Sou pesquisadora e tamboreira há mais de 2 décadas, imersa profundamente na cultura dos tambores, e os movimentos urbanos neo xamanicos.
Reflito neste post sobre minhas percepções sobre o sagrado e religiosidade desde uma vida urbana e contemporânea inspirada pelo livro “O Sagrado e o Profano “ de Mircea Eliade, professor, cientista das religiões, mitólogo, filósofo e romancista romeno, de quem subtraio trechos preciosos para esta rápida reflexão.
Começando pelo entendimento do que significa sacralidade.
Um nativo de qualquer continente diria: todos são meus parentes, tudo está unido e inter relacionado. Ou seja, o sagrado permeia tudo e todos ao nosso redor, e amplia nossa sensação de que “algo”o "mistério" carrega de sentido qualquer e toda ação.
Segundo Mircea Eliade: “...na vivência humana, a percepção do Sagrado se dá enquanto manifestação e esse “tornar-se presente” é inteiramente diverso da ordem do profano, da realidade cotidiana, dos fatos comuns da vida de todo dia…”
Eliade propõe o termo hierofania, entendido como a revelação a nós de algo que pertence a uma outra ordem, reveladora da não-homogeneidade do Mundo.
“... permanece sempre para o homem a sensação de que aquilo que se manifesta daquele modo específico provém de uma ordem diversa à do cotidiano, algo que é diferente, que guarda o poder impactante e às vezes tremendo de sua revelação. O império da Razão no Ocidente empurrou esses acontecimentos para uma região de sombras, próxima às zonas obscuras do psiquismo.
A perspectiva de Eliade é a da possibilidade de incorporar à vivência do homem urbano das sociedades industrializadas do século XX a impregnação do Sagrado.
“...Para a consciência moderna, um ato fisiológico – a alimentação, a sexualidade etc. – não é, em suma, mais do que um fenômeno orgânico, qualquer que seja o número de tabus que ainda o envolve (que impõe, por exemplo, certas regras para “comer convenientemente” ou que interdiz um comportamento sexual que a moral reprova). Mas para o primitivo um ato nunca é simplesmente fisiológico; é, ou pode tornar-se, um “sacramento”, quer dizer, uma comunhão com o sagrado. (ELIADE, Mircea, 2001)
Eliade nos fala da persistência e do valor desse tipo de experiência que ele chama de religiosa, mas que pode ocorrer de inúmeras maneiras e a todo tipo de pessoa, inclusive as não-religiosas, e é sempre impactante e transformadora para aqueles que a vivenciam.
O sagrado se manifesta de forma completamente diferente de nossa realidade cotidiana, e é desafiador compreender como o sagrado pode se manifestar em uma pedra ou árvore, que possamos “ouvir” a voz do vento ou abstrair conhecimento a partir de um animal.
O simbolismo e os cultos a “Mãe Terra'' caíram em desuso a partir da expansão das religiões monoteístas e nesse lapso de entendimento perdemos a conexão com saberes muito antigos e caminhos alternativos para a sacralidade e a gestão de nossa própria espiritualidade para além de intermediários e instituições.
O cultivo espiritual deveria independer de pertencermos a uma religião. Pode ser compreendido como uma profunda conexão e reverência a tudo que existe.
Neste entendimento, a sacralidade nada teria de transcendente, sobrenatural ou divino, ela surge na vida cotidiana, na forma como nos relacionamos com o outro, com a sociedade, com o meio natural e pode ser observada não somente nos movimentos harmônicos, mas também em meio ao caos e quando tudo parece sem sentido.
Funciona um pouco como um fio condutor ético que conduz para uma relação mais profunda com a vida.
Na busca pela cultura dos tambores, inevitavelmente mergulhei profundamente nos conhecimentos xamânicos, em especial da linhagem matricial que atribui a “Madona Negra” figura central.
Ela pode ser compreendida como todas as formas femininas sacralizadas, de Nossa Senhora a Kuan Yin, de Kali a Iansã, todas as expressões manifestas na forma de uma mulher-deusa-mãe.
Uma das minhas motivações, além do arrebatamento que tenho pelos tambores, é encadear a discussão sobre esta possibilidade de uso do tambor xamânico para meditar, como uma possível forma de resposta, ou uma ponte, capaz de preencher a lacuna que separa o espaço urbano do espaço natural, as dimensões pessoais das dimensões coletivas, e, em última instância, o sagrado do profano, as dimensões mágicas da realidade cotidiana.
Em um mundo a cada dia mais polarizado entre a descrença completa e o fanatismo religioso, considero uma possibilidade de resposta, podermos cultivar de forma laica e sem formalidades o que se possa entender “campo espiritual” .
…O Mundo deixa-se perceber como Mundo, como cosmos,
à medida que se revela como Mundo sagrado…
Mircea Eliade